1. Em diversos entes federativos, cristalizou-se a prática de transformar a exigência de cotas de pessoas com deficiência (PcD) e reabilitados da Previdência (art. 93 da Lei 8.213/1991) em verdadeiro gatilho de inabilitação automática. O TCU, contudo, ao julgar a representação relativa ao PE 90005/2025 (Funasa/RO), assentou diretriz diversa: a certidão do MTE, isoladamente, não basta para excluir licitante que declarou cumprir as cotas (art. 63, IV, Lei 14.133/2021). Entre a rigidez sumária e a leniência, o Tribunal edificou um terceiro caminho, exigindo diligência prévia e reconhecimento de excludentes de irregularidade.
2. O ponto de reflexão é nítido: na fase competitiva, a declaração de cumprimento goza de presunção relativa de veracidade, sujeita a impugnação e verificação, mas não a uma sanção automática de inabilitação. Em outras palavras, a certidão negativa do MTE é um sinal amarelo, não um semáforo vermelho. Diante dela, compete à Administração diligenciar a licitante para que esclareça a situação e apresente justificativas plausíveis, antes de cogitar a exclusão do certame.
3. E quais são as excludentes de irregularidade admitidas pelo TCU? O Tribunal explicitou hipóteses objetivas e verificáveis: (i) admissões e desligamentos que alteram o denominador de referência e explicam oscilações momentâneas; (ii) dificuldades concretas de preenchimento das cotas (fluxo de candidatos, perfis profissionais escassos, limitações regionais); (iii) desinteresse do mercado ou insuficiência de candidaturas apesar de esforços razoáveis; (iv) outros motivos plausíveis demonstrados com documentação mínima. Nessas situações, a “irregularidade” deixa de ser material e atual para se revelar provisória e justificável, afastando a inabilitação.
4. Como o próprio TCU observou, trata-se de um contexto dinâmico, com possíveis defasagens de atualização (eSocial) e movimentações de pessoal que podem não estar refletidas em tempo real. Daí por que a Administração deve ouvir, exigir documentos, cotejar cronologias e decidir com base na plausibilidade, não em presunções absolutas.
5. Esse redesenho não “afrouxa” a inclusão; reposiciona o foco do controle. Na habilitação, evita-se o erro tipo I (excluir quem pode cumprir) e preserva-se a competitividade e a vantajosidade do certame. Na execução contratual, por sua vez, aumenta-se o rigor: o art. 116 da Lei 14.133/2021 impõe o cumprimento permanente das reservas de cargos, e, se o contratado não comprovar esforços efetivos e resultados proporcionais, incidem sanções e até rescisão.
6. Do ponto de vista operacional, o TCU descreve um passo a passo de prudência administrativa: (a) recebida impugnação com certidão do MTE, abra-se diligência; (b) requisite-se cronograma de admissões e desligamentos, comprovantes de recrutamento (editais, anúncios, comunicações a entidades de inclusão), provas de tentativas de contratação e eventuais barreiras objetivas; (c) avalie-se a plausibilidade — o agente de contratação não audita exaustivamente na habilitação, mas valida a razoabilidade; (d) sendo plausível, mantém-se a licitante e registra-se a motivação; (e) transfira-se o controle estrito para o plano de fiscalização do contrato, com marcos, evidências e consequências.
7. Importa também fixar o ônus argumentativo: quem declarou cumprir a cota deve demonstrar os elementos que a tornam temporariamente inexequível ou em curso de cumprimento, sempre por meios idôneos. Prints descontextualizados e alegações vagas não bastam. Em contrapartida, quando a licitante documenta esforço real e razões circunstanciais (p. ex., crescimento abrupto do quadro por novos contratos, ausência de candidatos habilitados, tentativas formais frustradas), a inabilitação cede lugar a condições de execução e fiscalização reforçada.
8. O resultado é um equilíbrio institucional: licitação inclusiva, porém não excludente; execução exigente, porém justa com empresas que atuam de boa-fé. O TCU, assim, positiva uma agenda de inclusão sustentável, em que métrica e bom senso andam juntos. Excludentes de irregularidade não são indulgência: são a válvula técnica que impede que um requisito socialmente necessário se converta em barreira anticompetitiva.
9. Em suma, não há mais espaço para a inabilitação-automática fundada exclusivamente em certidão negativa. Há espaço para diligência, contraditório e prova mínima, com firmeza redobrada na execução. Esse é o recado do TCU — e vale tanto para proteger a finalidade inclusiva das cotas quanto para garantir a melhor contratação para a Administração.
10. Portanto, às empresas que participam de licitações e se encontram na órbita de incidência da reserva de cargos, é fundamental manter registros materiais de que foram ao mercado: publicaram editais e anúncios, buscaram alternativas de recrutamento, enviaram cartas/ofícios a associações de PcDs e reabilitados, celebraram convênios e acionaram canais públicos de intermediação de mão de obra; e, ainda assim, por desinteresse, indisponibilidade ou saturação do mercado, não lograram êxito no “preenchimento” integral das vagas reservadas. Essa trilha documental materializa as excludentes de irregularidade, afasta a inabilitação em troca de uma fiscalização mais rigorosa durante a execução contratual.
Publicado em 18 de Setembro de 2025